Sabe o que é extraordinário? No momento em que se faz uma história ou se cria uma imagem que encontra as graças da platéia, você efetivamente a perdeu. Ela cambaleia para longe, a danadinha: torna-se propriedade dos fãs. São eles que criam ao redor da obra suas próprias mitologias; que constroem as sequências com sua imaginação; que apontam as inconsistências no que escrevemos. Eu não posso imaginar um elogio maior. O que pode um escritor ou cineasta almejar além de sua ficção ser acolhida e encarnar sonhos de gente que ele provavelmente jamais conhecerá.
O texto acima, de autoria do escritor britânico Clive Barker, faz parte da introdução do primeiro número da série de quadrinhos Hellraiser. Nesta publicação, artistas de vários estilos e nacionalidades apresentam histórias que giram em torno da mitologia de Hellraiser, criada por Barker.
Desta forma ele pode observar, de fato, o fenômeno que teoriza em seu texto; onde suas idéias adquirem vida própria e transformam-se através da criatividade dos outros, sejam eles artistas profissionais ou simples fãs.
Mas nem sempre esta ‘captura’ se dá através de um fã ardoroso ou um artista convidado, frequentemente esta relação é estabelecida comercialmente, no momento em que a obra é adaptada da mídia original (livro, quadrinhos, cinema, teatro, tv, etc.) para uma mídia diferente.
Este é o “ponto de mutação” onde a obra, na mão de outros, se transforma. É como uma brincadeira de telefone sem fio onde certos detalhes se perdem e outros são inseridos, resultando em uma obra diferente, que pode ou não manter a essência do original.
Sherlock Holmes é um bom exemplo disso. Durante mais de cem anos, ao ouvir o nome do detetive, qualquer indivíduo visualizava um homem de boné e capa de caçador, com um enorme cachimbo recurvado na mão e que não encerrava um caso sem antes proferir o famoso “Elementar, meu caro Watson”.
Curiosamente, não era assim que sir Arthur Conan Doyle via sua criação. Todos estes elementos são fruto da visão de outros artistas que, ao lidar com o personagem, acrescentaram um pouco de si mesmos.
A capa e boné são obra de Sidney Paget, artista que ilustrou vários dos contos de Holmes para a revista The Strand. William Gillette, ator que incorporou o detetive mais de 1600 vezes no teatro, cinema (mudo) e rádio foi o primeiro a usar o cachimbo recurvado, no lugar do reto dos desenhos de Paget.
Gillette também usou a frase “Elementar, meu caro amigo“, referenciada em 1915 no livro Psmith Journalist, de P. G. Wodehouse como “Elementar, meu caro Watson”, que tornou-se uma das frases mais repetidas do século XX.
Todos estes elementos não-canônicos foram “oficializados” na cultura pop por influência do cinema, já que são usados em quase todos os mais de 200 filmes que tornaram Sherlock Holmes o personagem mais recorrente da telona, de acordo com o Livro Guinness dos Recordes.
O cinema aliás, com seu apelo visual e penetração em todos os segmentos da sociedade, é responsável por inúmeras ‘mutações’ em criações de outras mídias, que ficam para sempre incorporadas à identidade destas.
O livro Frankenstein ou o Moderno Prometeu, de Mary Shelley; publicado pela primeira vez em 1818, evita falar do processo utilizado para se dar vida ao monstro, apenas insinuando ter relação com o uso de eletricidade.
A versão cinematográfica, de 1931, um clássico da Universal; explora esta lacuna com a famosa cena do cientista captando relâmpagos para animar sua criação, apresentando ao mundo uma cena que o encantou e apavorou, sendo repetida por todas as adaptações, imitações e paródias desde então.
A própria maquiagem do monstro, com a cabeça chata e os parafusos no pescoço, aprofundou-se tanto no inconsciente coletivo como a ‘verdadeira’ face da criatura, que ilustra a maioria das edições impressas da obra de Shelley, mesmo sendo totalmente diferente do descrito no livro.
Uma adição inusitada da versão de 1931 foi o assistente corcunda, que passou a ser figura recorrente do gênero ‘cientista louco’. Mas neste filme o corcunda não se chamava Igor, este nome só foi incorporado ao ‘mito’ no filme Son of Frankenstein, de 1938.
Outros exemplos se alastram pelas incontáveis obras que compõe nossa cultura, e que transitam entre os vários veículos de comunicação, com resultados que vão desde obra prima a lixo absoluto.
Muito se discute se uma adaptação pode ou não superar o original, mas no final cada indivíduo acaba apreciando mais a versão que conheceu primeiro e que lhe cativou. A audiência, como bem dito por Barker, adota as idéias e acaba por decidir o que é válido ou não.